A Lei 12.403/2011 alterou vários dispositivos do Código de Processo Penal (CPP) relativos à prisão processual, fiança e liberdade provisória, criando - já não era sem tempo - um cardápio de outras medidas cautelares diversas da prisão.
O objetivo deste ensaio é interpretar como ficará o tratamento dos denominados "crimes inafiançáveis" diante da novel legislação, análise que será feita à luz da atual jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF).
Já numa primeira plaina, é possível verificar que o legislador reformista, modo correto e salutar, acabou com a divergência, até então existente na jurisprudência e na doutrina, relativa à necessidade de fundamentação da decisão que homologa, ou não, o auto de prisão em flagrante, para fins de manutenção da custódia cautelar ou concessão da liberdade provisória.
Doravante, o juiz, ao receber referido auto, após verificar se realmente ele trata de uma legítima situação de flagrante e se foram preenchidas as formalidades legais, terá que fundamentar as razões pelas quais mantém preso o flagrado ou por qual motivo concederá a liberdade provisória, com ou sem fiança. [01]
Pois bem, diante dessa nova disposição legal, alguns setores da doutrina pátria - notadamente aquele formado pelos adeptos do que já se chamou de "garantismo hiperbólico monocolar" [02], em virtude do seu marcante viés liberal e individualista, mas que também já foi chamado de "garantismo à brasileira", [03] apressaram-se em dizer que "a prisão em flagrante deixou de ser uma prisão cautelar", visto que ela "sempre terá que ser convertida em prisão preventiva".
Tal conclusão, todavia, não procede inteiramente, na medida em que:
Com efeito, ainda que passível de crítica, não há malabarismo retórico ou sofisma exegético capaz de negar que a pretensão do constituinte originário, ao proclamar a existência de crimes inafiançáveis, foi a de proibição de qualquer forma de restituição da liberdade aos flagrados na prática destes delitos, seja com fiança, seja sem fiança, ou, agora, seja mediante qualquer alternativa cautelar à prisão, sendo que a referência à expressão inafiançabilidade, feita na época, partia da equivocada suposição de que a vedação da concessão de fiança a tais crimes equivaleria à proibição da concessão de liberdade provisória. [05]
Reconhecendo essa vontade do constituinte e fiel ao seu papel principal - que não é o de legislador negativo, mas de garante da supremacia da Constituição Federal (CF) -, a excelsa Corte pátria sempre considerou constitucional a vedação de liberdade provisória feita pela legislação infraconstitucional, obviamente sempre que esta guardou obediência aos postulados constitucionais. Tanto assim que, em 2003, o STF editou a Súmula 697, reconhecendo, contrario sensu, a constitucionalidade da vedação à liberdade provisória aos flagrados na prática de crimes hediondos. [06]
Somente em 2008, diante de um caso peculiar e excepcional, [07] em que um jovem foi surpreendido com um cigarro de maconha, quando os policiais - sem ordem judicial, por suspeitarem de tráfico, em virtude de notícias de "populares que não quiseram se identificar" - resolveram fazer uma busca na sua casa, encontrando mais drogas, o Min. Eros Grau, que até então se alinhava à jurisprudência anterior, [08] abriu divergência, passando a reconhecer a inconstitucionalidade da vedação da liberdade provisória aos crimes inafiançáveis, determinando a soltura em todos os casos em que os juízes, filiando-se ao posicionamento que ele mesmo já havia adotado, mantinham presos o flagrados, tão-somente por força da inafiançabilidade, vindo nesse passo (equivocado, dada vênia), ao ponto de soltar um piloto de avião, participante de organização criminosa, preso em flagrante com 48 kg de cocaína trazidas da Bolívia! [09]
Sucede que, atualmente, com a aposentadoria do Min. Eros Grau, apenas os Ministros Cezar Peluzo, [10]Gilmar Mendes [11] e Celso de Mello esposam dessa linha de entendimento, cujos fundamentos estão sintetizados na ementa da qual se extraiu o seguinte excerto:
A despeito dos ponderáveis e sempre respeitáveis argumentos do decano da Suprema Corte, a realidade é que a maioria dos seus pares pensa de modo diverso, filiando-se ao entendimento de que a proibição de liberdade provisória, nos casos de crimes hediondos e equiparados, decorre da própria inafiançabilidade imposta pela Constituição.
Nesse sentido, no sítio daquela Corte encontram-se precedentes relatados pelos Ministros Dias Toffoli, [12]Ellen Gracie, [13] Joaquim Barbosa, [14] Ricardo Lewandowski, [15] Luiz Fux [16] e Ayres Britto, [17] os quais seguem orientação que pode ser sintetizada na seguinte ementa de lavra da Min. Cármen Lúcia:
O Min. Marco Aurélio, por sua vez, tem-se filiado ao entendimento da maioria, negando liminares baseadas no entendimento minoritário, sendo, todavia, sempre muito zeloso com a vedação de excesso de prazo na formação da culpa, nos termos da Súmula 691, [18] dando, ademais, indicativos de que seguirá a orientação da minoria, isso quando o Pleno julgar a divergência instalada, uma vez que foi ele quem reconheceu a repercussão geral. [19]
Como se vê, portanto, a maioria absoluta dos Ministros do STF filia-se ao entendimento que pode ser fundamentado nas seguintes assertivas:
Na hipótese de flagrante de crimes hediondos e equiparados, a proibição da liberdade provisória deriva logicamente do preceito constitucional do art. 5º, XLIII, da CF, que impõe a inafiançabilidade das referidas infrações penais, pois seria ilógico que, vedada a liberdade provisória mediante fiança, fosse ela admissível sem fiança, impondo-se, a respeito, a comezinha lição de hermenêutica no sentido de que o intérprete deve rejeitar sumariamente as exegeses que conduzem ao absurdo.
Portanto, na hipótese de flagrante de crimes hediondos e equiparados, é irrelevante a discussão acerca da existência, ou não, de fundamentação da decisão nos pressupostos da prisão preventiva.
Inconstitucional seria a legislação ordinária que dispusesse diversamente, tendo como passíveis de liberdade provisória delitos que a CF determina sejam inafiançáveis.
A Lei 11.464/07, ao retirar a expressão ‘e liberdade provisória’ do art. 2º, inc. II, da Lei 8.072/90, limitou-se a uma alteração textual, pois constituía redundância a "proibição da liberdade provisória e fiança". Logo, a Lei 12.403/2011 ao estabelecer, na nova redação do art. 323 do CPP, que são inafiançáveis os crimes de racismo; tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo e nos definidos como crimes hediondos; bem como nos crimes cometidos por grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, não precisaria dizer que eles são insuscetíveis de liberdade provisória, pois incorreria em nova redundância.
Ainda, seguindo a mesma linha de raciocínio feita pelo STF com relação à Lei 11.464/07, é possível sustentar-se que a Lei 12.403/2011 não pode alcançar delitos cuja disciplina conste em lei especial, tal como o de tráfico de drogas (art. 44 da Lei 11.343/06), visto que a legislação especial atende o comando do inciso LXVI do artigo 5º da CF, segundo "ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança".
Dito isso, tem-se que a partir da Lei 12.403/2011, ao analisar uma situação de prisão em flagrante pela prática de crime inafiançável, o juiz, se reconhecer a legalidade do auto, deverá negar a liberdade provisória,fundamentando a sua decisão na Constituição e na lei especial, se for o caso, mantendo a prisão por força do flagrante, isso porque estarão presentes os pressupostos de todas as prisões cautelares:
fumus comissi delicti: A prisão em flagrante implica em inversão do ônus da prova, pois gera certeza visual de autoria e materialidade, conforme se lê em qualquer manual de processo penal [20] e na jurisprudência, inclusive do STF [21]; Portanto, na hipótese de flagrante de crime inafiançável, os corolários do princípio da presunção de não-culpabilidade - que não é absoluto, como de resto nenhum outro é - terão a sua força quebrantada. [22]
Periculum libertatis: Há uma presunção constitucional de periculosidade da conduta protagonizada pelo agente que é flagrado praticando crime hediondo ou equiparado. A Constituição parte de um juízo apriorístico (objetivo) de periculosidade de todo aquele que é surpreendido na prática de delito hediondo, independentemente da presença dos pressupostos cautelares do art. 312 do CPP. [23]
Obviamente, até mesmo em virtude da divergência jurisprudencial e doutrinária, nada impede, pelo contrário, tudo recomenda, que diante de peculiar gravidade no caso concreto, o juiz utilize reforço de argumentação, mantendo a prisão pelo pressuposto cautelar da ordem pública, visando assegurar a credibilidade das instituições públicas, em especial do Poder Judiciário, dando visibilidade e transparência às políticas públicas de persecução criminal, conforme admitem inúmeros precedentes do STF, inclusive na sua composição plena. [24]
Sem embargo, por outro lado, as particularidades do caso concreto também poderão tornar extremamente iníquas as regras do constituinte e do legislador, a elas devendo o julgador sobrepor o postulado da proporcionalidade, concedendo a liberdade. Como exemplo, podemos citar caso em que atuamos, concordando, antes mesmo da Lei 11.343/06, com a liberdade em caso de tráfico "minorado", quando uma moça, primária e sem antecedentes, com trabalho e residência fixos, foi flagrada levando cigarros de maconha para o namorado preso. Mas, mesmo nesses casos tópicos, a vedação da liberdade provisória aos crimes inafiançáveis continuará sendo reconhecida como constitucional em abstrato, e a concessão da liberdade, por ser excepcional, desafiará adequada fundamentação. [25]
Assim, pelo fio do exposto, conclui-se que o flagrante continua sendo uma espécie de prisão cautelar e continuará prendendo "por si só" nos casos de crimes inafiançáveis, sendo que a nova redação do artigo 321do CPP[26] carecerá de "interpretação conforme a Constituição", ou seja, "o juiz deverá conceder a liberdade provisória", salvo se o crime dela for insuscetível.
Esse breve ensaio, fulcrado exclusivamente na análise dos precedentes da excelsa Corte, fará parte de artigo coletivo a ser publicado na Revista do Ministério Público do RS, em que certamente receberá o devido aporte da doutrina constitucionalista brasileira e alienígena.
Por ora, apenas apontou-se que, como instância final no tocante à matéria Constitucional, a jurisprudência do STF já se posicionou a respeito da vedação de liberdade provisória nos crimes inafiançáveis, sendo possível, a partir dela, extrair-se uma adequada interpretação da Lei 12.403/2011, pois, como é de comezinho saber jurídico: "Não se pode interpretar a Constituição conforme a lei ordinária. O contrário é que se faz."
Entende-se que a utilização desse escólio jurisprudencial, já sedimentado na Suprema Corte, ampliará o grau de coerência e harmonia da jurisdição, reduzindo o sortilégio e o excessivo decisionismo que permeiam os órgãos inferiores do judiciário, tornando a atividade jurisdicional mais equânime e adequada aos anseios de pacificação social.
Nenhum comentário:
Postar um comentário