O TORTURADOR E O MONSTRO
Mesmo depois de quatro décadas, o odor de corpos apodrecidos ainda exala pelo Brasil e cheira mais forte em São Paulo, no bairro da Vila Mariana, nos fundos de uma delegacia de polícia na rua Tutóia na qual funcionou o DOI-CODI ou Operação Bandeirantes (OBAN), um dos principais centros de tortura e de assassinatos de presos políticos durante a ditadura militar.
O comandante mais ilustre da OBAN, no período de setembro de 1970 a janeiro de 1974, foi o então major do Exército, e hoje coronel, Carlos Alberto Brilhante Ustra, responsável por torturas em prisioneiros políticos e assassinato de vários deles, entre os quais Joaquim Alencar de Seixas e Luiz Eduardo Merlino, em 1971, Carlos Danielli, em 1972, e Paulo Stuart Wright, em 1973.
O carniceiro da rua Tutóia já foi declarado “torturador” pela Justiça brasileira, mas ainda assim Ustra continua em liberdade e fazendo apologia dos seus crimes. Para isso conta com a ajuda dos seus superiores nas Forças Armadas da época da ditadura e de alguns oficiais atuais, incluindo brigadeiros, almirantes e generais coniventes, criminosamente, com a ocultação de cadáveres dos mortos sem sepultura.
Na pesquisa que realizei para livro que está em fase final de redação de texto sobre a organização de esquerda Ação Popular comprovei, documentalmente, que Carlos Alberto Brilhante Ustra não agiu por conta própria e ele mesmo já deixou claro em entrevistas que recebia ordens de seus superiores do Alto Comando do Exército e das Forças Armadas para cometer atrocidades nas masmorras do DOI-CODI paulista.
Mas dificilmente Ustra e seus superiores serão punidos como está acontecendo com os torturadores da ditadura argentina, inclusive porque conta com a decisão do Superior Tribunal Federal (STF) que, no ano passado, considerou que a Lei da Anistia protegeu os torturadores e que eles não podem ser punidos por crimes durante a ditadura. Para isso o STF teve a ajuda da Advocacia Geral da União do governo do ex-operário e então presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva.
Os prisioneiros assassinados e desaparecidos durante a ditadura no Brasil são menos de 1 mil, mas o forte odor dos corpos apodrecidos desses mortos sem sepultura, que Ustra e seus camaradas militares e civis executaram com requinte de crueldade, continua aviltando a pátria mãe gentil. Uma situação que lembra o que acontece em Incidente em Antares, fascinante livro de Erico Veríssimo, no qual sete mortos insepultos adquirem vida e vão vasculhar a podridão moral da sociedade.
No caso do torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra há o agravante dos métodos sofisticados de tortura adotados pelo Alto Comando das Forças Armadas no DOI-CODI que ele comandou.
Sobre isso, em 1987, o jornalista Vicente Alessi Filho escreveu texto primoroso, mas até agora inédito e que faz parte do livro que estou preparando:
Pode até haver exceções, mas é razoável imaginar que médicos legistas, e também os patologistas, não costumam carregar a família para visitar suas salas de autópsia, suas mesas de dissecação e a matéria prima do seu ofício. Mas o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra deixa escapar uma ponta de orgulho por ter eventualmente compartilhado, com mulher e filhos, do seu local de trabalho entre 1970 e 1974. É um caso que fatalmente evoca a história do Dr. Jekill e de Mr. Hyde e a sensação de que essa dupla de um tenha mais a ver com a realidade do que pretendia Robert Louis Stevenson – o autor inglês com certeza não foi apenas um contador de histórias. Com mais propriedade, ele talvez tenha retratado com muita fidelidade algumas nuanças da natureza humana, deixando a ficção por conta da mente de cada leitor.
No caso do coronel Brilhante Ustra, essa dualidade de personalidade foi constatada fartamente por cidadãos e cidadãs que por qualquer razão o conheceram como carcereiro de presos políticos e responsável final e direto por cada atitude de seus subordinados na condição de comandante do DOI paulista. Do major Valdyr Coelho, seu antecessor (ele morreu em Curitiba, já coronel, de causa natural, no fim da década de 70), o então major Ustra herdou uma estrutura de pouca eficiência técnica, composta de homens que eram autênticos bate-paus – da inauguração da Operação Bandeirantes, a Oban, nos primeiros meses de 1969 (começou a operar a partir do quartel da Polícia do Exército, na rua Abílio Soares, e em setembro foi transferida para as dependências definitivas nos fundos do Distrito Policial da rua Tutóia) até que a nova estrutura dirigida por Ustra começasse a funcionar, praticamente todos os que por lá passaram tiveram a sua dose de tortura física.
No começo, ainda em 1969, tudo o que os bate-paus e seus chefes sabiam era que precisavam obter informações rápidas. Eles desconheciam a história e a cultura própria das novéis organizações políticas não partidárias, e com dificuldades entendiam as das próprias organizações tradicionais, que eram os dois Partidos Comunistas. Suas, digamos, vitórias, foram todas elas obtidas à custa da força bruta.
Fonte http://ccmlsp.net/?p=992
O uso da inteligência, da psicologia aplicada ao prisioneiro, das técnicas do desgaste gradual coincidiu com a chegada de Brilhante Ustra. Como qualquer empresa que pretende ter futuro no mundo dos negócios, os DOI nasceram para ser eficientes, tanto na análise quanto na operação prática, não dispensando, porém, os bate-paus de melhor fama no mercado.
O uso da inteligência, da psicologia aplicada ao prisioneiro, das técnicas do desgaste gradual coincidiu com a chegada de Brilhante Ustra. Como qualquer empresa que pretende ter futuro no mundo dos negócios, os DOI nasceram para ser eficientes, tanto na análise quanto na operação prática, não dispensando, porém, os bate-paus de melhor fama no mercado.
Os prisioneiros sentiram as diferenças de métodos na pele e no espírito. Ao mesmo tempo em que Ustra e equipe passaram a acumular experiência e informações, manuseando-as de forma mais moderna e certeira, aos prisioneiros eram servidas duas refeições diárias, por exemplo, um luxo incompatível com a história da velha Oban. Nenhum preso, contudo, sofreu menos por causa de tanta modernidade, de tanta liberalidade nos usos e costumes internos.
No máximo, alguns poucos passaram incólumes, diante das máquinas de choques, das cadeiras do dragão, do pau-de-arara e assemelhados e dos músculos dos torturadores. A “face humana” que Ustra persegue ainda hoje com dedicação pode até corresponder a uma fração da sua natureza – aquela mesma que permite a certos homens ser cruéis.
Fonte: http://ccmlsp.net
Fonte: http://ccmlsp.net
Nenhum comentário:
Postar um comentário