CRIME E CASTIGO
Tristão de Athayde
Pensador cristão brasileiro, membro atuante da igreja junto à Ação católica, falecido em 14 de agosto de 1983
Sou contrário à pena de morte por cinco razões: uma de ordem intrínseca, uma de ordem pragmática, duas de ordem extrínseca e uma de ordem histórica.
1. A razão de ordem de ordem intrínseca é que uma pena irreparável só pode ser decretada por um tribunal infalível. Daí ser logicamente compreensível que Deus, por definição e que nos deu a vida, também nos pode dar a morte. E, pelo contrário, seja ilógico que nós possamos legitimamente suicidar ou condenar qualquer pessoa à morte. Esta é sem dúvida irreparável. Toda sentença à morte é substancialmente irrecorrigível, quanto aos seus efeitos. Por outro lado, todo juízo humano, individual ou coletivo, é falível. Pode errar. Se pronunciar uma penalidade reparável, as conseqüências de sua sentença podem ser corrigidas. Mas se decretar uma pena irreparável será impossível conter ou atenuar suas conseqüências. E seu resultado será uma injustiça monstruosa, se houver erro judiciário. Por isso considero a pena de morte, em si, logicamente inaceitável. E não há razões práticas que possam, em sã consciência, justificar erros doutrinários. Nem mesmo as razões do coração podem alterar a verdade intrínseca das razões da inteligência. Podemos, quando muito, compreendê-las. Não sobrepô-las. Só há uma soberania absoluta: a natureza das coisas. Como diz Etienne Gílson: este é o tribunal supremo a que devemos recorrer em nossas dissídias humanas. A pena de morte atenta, penso eu, contra razões especulativas que derivam da natureza das coisas. Primeira razão que me leva a rejeitá-la.
2. A Segunda razão é de ordem pragmática. A pena de morte, dizem os seus defensores – que os há e dos mais ilustres teólogos, filósofos, moralistas e estadistas, tanto é difícil lidar com problemas de vida e morte – é uma legítima defesa do indivíduo e da sociedade.
Não nego que possamos matar em legítima defesa. E que seja até justificável a guerra justa, por mais que a monstruosidade técnica dos modernos armamentos e a complexidade das causas que levam à guerra tornem dificílima a classificação de uma guerra como justa ou injusta. Mas não é disso que estamos tratando. Na defesa individual nada de mais legítimo do que dar a morte a alguém para defender a nossa vida ou a daqueles cuja vida temos a dever de defender. Mas o que é duvidoso é que essa modalidade de punição, oficializada na maioria ou pelo menos em numerosas nações, alcance realmente os fins a que se destina. Quais são esses fins? Suprimir consideravelmente a criminalidade. Antes de tudo, pode haver uma remota analogia mas nunca equiparação entre a morte que possamos provocar em legítima defesa e a que provocamos pela aplicação desse tipo de penalidade.
Quando matamos em legítima defesa autêntica, fazemo-lo involuntariamente. Quando matamos pela decretação de uma sentença fazemo-lo voluntariamente. O primeiro é um ato natural e imprevisto, provocado pelo instinto de conservação. O outro é um ato pensado e friamente executado. O primeiro é consecutivo a um ataque sofrido, a um crime cometido. O segundo é antecipativo à conseqüência que possa provir de deixar em vida um elemento reconhecidamente insociável. Só por analogia remota podemos falar em legítima defesa social no caso da pena de morte.
Além disso, como íamos dizendo, nada de mais contestável do que os resultados práticos da pena de morte. Nenhum dos países onde impera a pena de morte conseguiu, por meio dela, eliminar a criminalidade. Ou mesmo reduzi-la. O único argumento empregável é uma hipótese: seria ainda pior sem ela. Mas acaso é legítimo dispor da vida alheia simplesmente na base de raciocínios hipotéticos? Pode ser que sim. Pode ser que não. O fato positivo é que o crime entrou na história da humanidade desde que Caim matou Abel. Isto é, desde que o mau matou o bem. E a espécie humana se dividiu entre inocentes e culpados. Como meio de impedir a repetição desse crime original, consignado nas Sagradas Escrituras, todos os Estados, mais ou menos civilizados, adotaram essa punição. E o resultado?
A pena de morte não pode ser defendida, legitimamente por motivos pragmáticos, porque não alcançou até hoje, em todas as nações que a aplicaram, o resultado desejável. Tomemos para exemplo a mais poderosa e bem organizada das nações modernas: os Estados Unidos. A pena de morte, sempre existiu em sua legislação. A inflexibilidade dos seus juízes em sua aplicação se tornou proverbial. E casos houve, como o de Sacco e Vanzetti, da nossa mocidade, que abalaram a consciência da humanidade inteira, sem conseguir abrandar a implacabilidade da lei.
A famosa sentença de Joseph de Maistre, em outras palavras, que o carrasco é o companheiro inseparável de uma sociedade bem organizada, foi sempre levada ao pé da letra pela nação mais poderosa e bem organizada do mundo. Logicamente, ou antes, pragmaticamente, a criminalidade desse país deveria decrescer na razão direta da aplicação de uma penalidade tão convincente e efetiva.
Ora, o que nos informam os documentos oficiais mais recentes é precisamente o oposto. Eis o que consta do último Uniform Crime Reports do Federal Bureau of Investigation, o mais que famoso FBI, divulgado no dia 13 de agosto último, pelo seu diretor J. Edgar Hoover, e resumido no número 25 de agosto do U. S. News World Report, pág. 6/32.
“A probabilidade de que um americano seja vítima de um crime este ano é de 1 para 50, o dobro do perigo que corria há nove anos passados. O crime em nosso país mais do que duplicou em volume – aumentando de 122% - entre 1960 e 1968. Só em 1968 aumentou mais 17,5%. Nos primeiro três meses de 1968 aumentou mais 10%. Os crimes estão crescendo 11 vezes mais depressa do que a população. Enquanto o número de crimes cresceu, nesse período, 122%, a população só cresceu 11%. Assim é que a atual proporção de crimes – o número de crimes graves por 100 mil habitantes – subiu 99%... O relatório menciona um total de quase 4,5 milhões de crimes vários, no ano passado, incluindo 13.650 assassinatos, 31.600 estupros e 282.400 casos de assaltos a mão armada... Os assaltos a banco subiram 302% desde 1960... Em 1968 as grandes cidades sofreram o maior aumento de criminalidade, 18% em relação a 1967”.
E por aí afora. E o curioso é que vários altos funcionários da Educação, comentando o aumento de atos de vandalismo, longe de patrocinarem o aumento das penalidades, o que recomendaram é a organização comunitária de defesa, das community residents, que deu excelentes resultados em Rochester, Nova Iorque.
O que no caso nos interessa é a verificação de que a pena de morte, em ação mais que secular nos Estados Unidos, não foi capaz até hoje sequer de manter o mesmo nível de criminalidade. Já não falo em reduzi-la ou suprimi-la, o que toca as raias da utopia.
Será por esse motivo que a Inglaterra já suprimiu ou está por suprimir a pena de morte, reconhecendo a sua ineficácia prática?
Da Rússia não temos notícias. Conhecemos apenas a implacabilidade dos expurgos e o terrorismo cultural de que Kuznetsov nos deu, recentemente, o mais clamoroso dos testemunhos. Há tempos, um repórter estrangeiro estranhou a pobreza das instalações judiciárias de Moscou. E um informante oficial explicou que assim era porque em breve não seriam mais necessárias grandes instalações de justiça, já que o crime desapareceria com a aplicação gradativa do sistema comunista.
Não digo que os defensores da pena de morte tenham a seu respeito as mesmas utópicas ilusões desses cândidos crentes nas virtudes miríficas do comunismo... Por ora, os regimes totalitários continuam a aplicar a pena de morte como sendo a mais normal e eficaz das medicinas sociais.
Mas as estatísticas de uma nação realmente democrática como os Estados Unidos, onde os direitos dos condenados pelos crimes mais hediondos, como o do matador das enfermeiras de Chicago, são tão exasperadamente respeitados, essas estatísticas nos demonstram positivamente que o argumento da legítima defesa social é extremamente frágil.
Em nenhum país do mundo a pena de morte impediu, e nem mesmo evitou o aumento de toda espécie de criminalidade. Eis porque não aceito o argumento pragmático em sua defesa.
Rio de Janeiro, 1970.
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